terça-feira, março 06, 2007

A resposta

Desde o liceu que tenho imensos problemas com a tradição de ligar a biografia do autor à sua obra, cheguei a ter "trocas de impressões" com professores que se recusavam a ver para além da vida pessoal. Admito que há obras intrinsecamente ligadas a determinados momentos da vida de um/a escritor/a como a obra de Maya Angelou... ou qualquer obra do Hemingway em que determinada personagem é alcoólica. Mas onde encaixar todas as obras que nasceram da imaginação, do sonho e sim, por que não? Do trabalho dum escritor? Quer-me parecer que quem tem dificuldade em aceitar que há neste mundo obras brilhantes que são fruto de génio e não de notas tem dificuldade em acreditar ponto. Uma professora do liceu costumava introduzir um poema com uma descrição dos acontecimentos na vida do poeta no ano em que o poema fora escrito (em alguns casos no ano em que se julgava ter sido escrito), na altura não liguei muito, era preciso estudar a vida do poeta logo era melhor prestar atenção mas lembro-me de "macacar" o caderno todo quando a dita senhora analisava o poema de acordo com os acontecimentos na vida do poeta: Camilo Pessanha e uma mulher de cabelo verde nas ondas do mar? Ora isto foi devido ao ópio. (se bem que aqui é bem possível). Fernando Pessoa e A mensagem? Vejamos, sim, frustração com o estado actual das coisas em Portugal porque nessa altura... Álvaro de Campos? Homenagem a Walt Whitman (aqui num belo daguerreótipo). Como se o poeta não pudesse imaginar o sentimento descrito, escrever sobre algo que leu, sobre um amigo, sobre algo que sonhou e/ou viu sob efeito de drogas. E isto chateia-me muito menos do que a mania da Fnac (por exemplo) de encaixar escritores homossexuais como Oscar Wilde (obra online em formato pdf) na secção gay & lesbian quer a obra tenha conteúdo homossexual ou não, The picture of Dorian Gray pronto e tal, ainda aceito, mas The importance of being Earnest? As histórias?...

Isto tudo porque houve alguém que me perguntou o porquê da biografia do Boris Vian, se era para compreender a obra melhor. Só quem nunca leu Boris Vian é que perguntaria tal coisa - quando os títulos não tem nada a ver com o conteúdo, veja-se o exemplo de Outono em Pequim: a acção decorre num longo verão na Mesopotâmia e as citações que introduzem os capítulos tanto vêm de outras obras literárias como de enciclopédias de química ou de folhetos apanhados do chão. Acontece que o Boris Vian que também foi músico de jazz, actor, inventor, tradutor, jornalista entre outras coisas morreu aos 39 anos de idade com uma obra vasta e interessante. Não li a biografia da Katherine Hepburn para perceber os seus filmes melhor (se bem que esclareceu algumas das suas escolhas e fiquei a saber o que realmente achou de alguns) mas pelo puro gozo da leitura: "Stone-cold sober, I found myself absolutely fascinating." Eu percebo que me digam que faz parte do programa escolar e que os professores são obrigados a seguir as regras mas uma coisa é falar da vida dum escritor, outra coisa é falar da sua obra, da sua escrita. O contexto histórico, cultural e social é muito importante mas não se o escritor viveu numa casa em vez de um apartamento e como essa diferença - talvez os seus amigos vivessem todos num apartamento - fez com que escrevesse um dos marcos da literatura mundial. A ironia é que isto muitas vezes é um grande exercício mental por parte daqueles que defendem que as obras surgem de factos reais, tal é o fundamentalismo que acabam por "imaginar" uma ligação da obra ao autor. O melhor é mesmo fazer-se como antigamente as senhoras da terrinha da minha avó faziam: faziam uma pergunta, abriam uma bíblia ao acaso e liam a primeira frase que encontrassem, tendo assim acesso à resposta do Senhor.

Vou experimentar com o meu livro favorito do Boris Vian, O arranca-corações:

"-Não - suspirou ela.- Os miúdos já estão deitados. Entretanto, ia desabotoando o vestido, mas Jaime-morto reteve-a. -E se falássemos um bocadinho? -propôs ele. - Não vim aqui para isso - obtemperou ela. - Se é para aquilo, quero, mas conversar, não. -Só queria perguntar-te uma coisa - disse ele. Ela despiu o vestido e sentou-se em cima da erva. Sentiam-se, ali, naquele recanto afastado do jardim, como se estivessem dentro de uma caixinha."

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