segunda-feira, julho 07, 2008

Sofrimento cultural

Há meses emprestaram-me um filme turco chamado Eskiya. Foi-me emprestado por uma amiga búlgara (que namora com um turco), somos bastante próximas e por me repetir que o filme era lindíssimo mas que a tinha feito chorar, achei que devia ver. Ora com dezenas de filmes e séries para ver fui adiando com a desculpa que não queria mais um Bambi ou A million dollar baby mas adiei tanto que comecei a receber piadas então ontem obriguei-me a ver o bendito filme. Para minha surpresa não chorei, até ri um bocado mas não por bons motivos. Eskiya é dos piores filmes que já vi e eu vi muitos maus, contudo, em retrospectiva acho que é daqueles filmes tão maus que a descrição só os pode tornar interessantes e cómicos. Se perdoarmos a produção ridícula -quem sou eu para reclamar da falta de orçamento?- e engolirmos uma senhora de trinta anos a passar por idosa apenas por ter uma peruca, armas de polícias que disparam como bombinhas de carnaval (juro), uma ferida de bala que explode cerca de sete segundos depois do disparo, um corpo que salta epilepticamente com apenas uma bala e um fogo de artifício numa tela em frente ao actor - acho que era suposto parecer que o actor estava mesmo a ver o fogo - ainda temos de lidar com um guião tão previsível que comecei a dizer as falas antes dos actores, se bem que falhei alguns tempos verbais e eufemismos; depois do guião temos ainda de engolir um único actor mais ou menos decente entre três de teatro amador e cinquenta mendigos de rua (só podem ter aceite pela sopa ao fim do dia). Eskiya é turco para "bandido" mas não um bandido qualquer, um daqueles que se refugiam na montanha para nunca serem apanhados pela polícia. Baran era um verdadeiro Eskiya que foi traído pelo melhor amigo que roubou o seu ouro e a sua amada. Uma história que nunca antes foi contada. Cof. Passou 35 anos na prisão onde os seus amigos, o seu bando, definharam às mãos da tortura (que ninguém ache que a Turquia não tem armas de destruição...) e às doenças que eu vou evitar na Índia. Baran regressa à sua terra natal para descobrir uma barragem e uma "velha" que o tenta convencer a ficar. Baran parte. Encontra o homem que o denunciou à polícia; fita-o. Fita-o durante muito tempo. A dada altura há este brilhante diálogo:

- Baran.

- Sim.

(...)

- Baran....

- Sim...

(...) (nesta altura a minha companheira de filme gritou algo como "oh meu Deus, é como ver o Doctor Jivago outra vez!)

- Baran... Vais matar-me, não vais?

- Sim.

- Esperei muito tempo por este dia. Vais mesmo matar-me?

- Eventualmente.

- Obrigado, Baran. Obrigado!

Não há palavras para descrever a qualidade do trabalho de actores. Enfim... mas com este diálogo Baran descobre que o seu melhor amigo se casou com a sua prometida e parte para Istanbul. Istanbul tem 10 milhões de habitantes mas Baran encontra logo no comboio um traficante de droga e ladrãozeco e ficam tornam-se próximos como pai e filho, um entregando o dinheiro à máfia pelo outro e o outro procurando uma pessoa numa cidade de milhões. O arquinimigo aparece convenientemente na televisão, é rico e poderoso. Há polícia e máfia pelo meio. Baran descobre que Keje, a sua amada, está viva. Na frase seguinte descobre que ela não fala desde que ele foi preso. Na frase seguinte já está em frente a Keje. Baran e Keje. Keje e Baran. A câmara aumenta o suspense. Ninguém fala. Ele avança uns passos. Ela levanta-se. Ah, sim, por algum motivo estranho todas as personagens sabem sempre quando o Baran está a chegar ou nas suas costas, eu disse que era dos banhos turcos mas fui acusada de racismo- não era, o homem passou 35 anos numa prisão e ainda não tomou banho. Baran poetisa. E ouve-a a falar (talvez o Contra-Informação possa imitar a voz roca da senhora). Baran e Keje. Baran de olhos humedecidos promete voltar.Baran decide ajudar o bandideco que vê como um filho. Baran falha. O jovem morre. Baran fica furioso e ataca a garagem dos mafiosos (sim, garagem), numa garagem com 15 homems armados Baran sai ileso, nem um arranhão. O truque é um amuleto oferecido pela "idosa" da aldeia, é melhor do que um colete anti-balas, alguém está a ver como é que isto vai acabar? Depois de matar todos os mafiosos e o ex-amigo anda pelos telhados de Istanbul até a polícia prometer não o magoar. Bombinhas de carnaval. Baran é intocável. Atravessa um terraço e perde o amuleto. Bombinhas de carnaval. Baran apercebe-se da perda do amuleto. Zoom para suspense. Fogo de artifício numa tela em frente ao terraço. A tela mexe-se. Baran avança a passos largos em direcção à polícia. Bombinhas de carnaval rebentam no peito de Baran. Eskiya abre os braços ao fogo de artifício sob os olhares espantados da polícia. Eskiya voa em direcção ao fogo de artifício. Keje olha para ao céu e sabe que Baran morreu. - Adeus, Eskiya. Eu dei pulinhos no sofá e murrinhos na almofada. - Acabou, acabou, acabou!!! (...) Vou matar a Maya. Espero que o meu sofrimento vos ajude nas vossas aventuras culturais, às vezes a curiosidade, simpatia e abertura para outras culturas fazem-vos sentir quarenta anos mais velhas mas sem a peruca.

NB. O filme é (incrivelmente) de 1996 e é super elogiado na Turquia e até no IMDB (quase sempre comentários turcos) portanto sugiro algum decoro ao falarem no filme a nacionalistas.

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